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domingo, 15 de abril de 2012

Artigo sobre a necessidade de simplificação da linguagem jurídica



QUAL SERÁ O FIM DO JURIDIQUÊS ?

        
      Para a população brasileira em geral, o "Juridiquês" é um idioma tão complicado e incompreensível quanto o Grego, o Hebraico, o Mandarim ou o Russo. Mais do que um idioma, o Juridiquês constitui um verdadeiro abismo entre os profissionais do Direito, presos em seu círculo de formalidades, e o povo como um todo, cada vez mais necessitado de uma Justiça eficiente, clara e célere. Superar tal problema demanda não só uma simplificação da linguagem jurídica, como também uma nova abordagem acerca das funções sociológicas, políticas e econômicas do Judiciário em âmbito brasileiro. Desse modo, é necessário estabelecer parâmetros mais eficazes de comunicabilidade entre os operadores jurídicos e os diversos segmentos sociais, por meio da superação de dois aspectos preponderantes que tornam a linguagem jurídica bastante rebuscada: o histórico e o técnico.


        Historicamente, é oportuno ressaltar que o Juridiquês, seja no Brasil ou em outros países, tem características culturais muito atreladas à noção do Direito como instrumento de controle social usado pela e para a elite. Esse aspecto histórico contribuiu de modo nítido para tornar a linguagem jurídica propositadamente inacessível ao povo, mantendo-o alheio tanto ao conhecimento quanto à defesa efetiva de seus direitos. Com o implemento dos primeiros cursos de Direito no Brasil, mais precisamente em Recife e em São Paulo, no ano de 1827, imprimiu-se a ideia segundo a qual o ensino jurídico constituiria privilégio da aristocracia para a formação de quadros nacionais. Em outras palavras, o Juridiquês brasileiro transformou-se em reflexo das próprias disparidades sócio-econômicas de um país que sempre foi marcado pelas grandes concentrações de renda e de poder nas mãos de poucos, em detrimento de uma maioria miserável e analfabeta.



        Nesse sentido, juristas como Rui Barbosa ou Pontes de Miranda se expressavam por meio de uma linguagem rebuscada e prolixa, cuja decodificação só estaria ao alcance de pouquíssimos bacharéis brasileiros, formados para se sobreporem política e ideologicamente às massas iletradas. Além desse problema de cunho histórico, outro aspecto intrínseco à linguagem jurídica diz respeito ao tecnicismo hermético que costuma estar presente não só entre os operadores do Direito, mas também entre profissionais de diversas áreas do saber, como a Medicina e a Economia, por exemplo. Por tecnicismo hermético, entenda-se o uso reiterado de termos apenas identificáveis por pessoas inseridas em círculos profissionais específicos, de modo a se impossibilitar a compreensão de tais termos por indivíduos que estejam fora dos referidos círculos. Expressões latinas como fumus boni iuris podem soar tão enigmáticas para um economista quanto a idéia de elasticidade-preço da demanda pode parecer indecifrável para um advogado. Assim, torna-se perfeitamente compreensível a perplexidade das pessoas que escutam termos como litispendência ou litisconsórcio e ficam sem saber se tais substantivos designam objetos materiais, bens perecíveis, produtos ou meras abstrações jurídicas.



         É evidente que cada ramo do conhecimento possui termos próprios para designar seus objetos de estudo, porém tais termos não devem ser utilizados como meios de se dificultar a comunicação entre os conhecedores de certo tema e a sociedade em geral. Assim, a consciência de que a linguagem jurídica é direcionada a um público heterogêneo deve ser incutida nas atividades de todos os operadores do Direito, pois eles desempenham um conjunto de funções sociais, políticas e econômicas que não podem ser suplantadas por formalismos linguísticos ou burocráticos.  Nesse sentido, a própria Constituição Federal determina, em seu artigo 13, que a língua portuguesa é o idioma oficial do Brasil, ensejando o entendimento de que os atos do Estado brasileiro, inclusive os judiciais, necessitam ser proferidos em Português claro e acessível aos cidadãos do País.

     Da mesma forma que nenhum brasileiro é obrigado a entender Árabe ou Mandarim, ele obviamente também não tem qualquer obrigação em compreender Juridiquês, mesmo porque esse “idioma” não é ensinado nas escolas de nível fundamental ou médio, mas apenas em cursos e instituições de nível superior. Em virtude de todas as ideias até aqui esboçadas, o Juridiquês deve ser substituído pelo Português objetivo e acessível a todas as pessoas que busquem algum provimento judicial. O estilo pomposo e rebuscado que muitos operadores do Direito utilizam para se expressar apenas aumenta a distância entre eles e os segmentos sociais mais desfavorecidos. Em um país que se pretenda minimamente democrático, as formas de comunicação, entre elas a jurídica, devem ser instrumentos de diálogo social e não podem constituir, portanto, um mero fim em si mesmas. Nesse sentido, o Direito não pode ser cego diante de suas necessidades de mudança contínua e, consequentemente, a linguagem que o expressa deve ser compreensível à população em geral.
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Veja um entrevista interessante nesse sentido pela simplificação da linguagem jurídica:

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Artigo: Paranóia da Esperteza ou Mistificação da Ética ?


PARANÓIA DA ESPERTEZA 
OU MISTIFICAÇÃO DA ÉTICA ? 
Pequena crônica para reflexão, por Juliana S. Valis




        Logo após a Semana de Arte Moderna de 1922, o escritor Monteiro Lobato publicou uma ferrenha crítica à pintura de Anita Malfatti por meio do artigo designado “paranóia ou mistificação?”. Em tal artigo, o autor referido atacava basicamente os contornos “disformes” da arte modernista, em contraponto ao que ele considerava excelso na técnica da arte clássica. 


   Noventa anos se passaram desde aquele fatídico episódio e a crítica de Monteiro ainda enseja uma série de reflexões oportunas, nem tanto atreladas à arte de pintar quadros, mas, sobretudo, à arte de eleger e "fiscalizar" governantes. Sim, o voto, em tempos atuais, deixou de ser apenas um direito, ou um dever, para se transformar em uma espécie de “oitava arte”, consistente na árdua tarefa de conferir mandatos a pessoas que sejam realmente íntegras na gestão dos bens públicos. O grande problema da política brasileira, nesse sentido, é que a aludida “arte do voto” se tornou refém de dois monstros da democracia: a “paranóia da esperteza” e a “mistificação da ética”.  




 
  É bastante simples compreender a essência dos dois termos referidos, mesmo porque exemplos não faltam para esse objetivo. Preliminarmente, torna-se oportuno salientar que o vocábulo “esperteza” tem assumido conotações bastante problemáticas na sociedade brasileira, influenciando os grupos mais humildes até os mais abastados.


     Nesse sentido, alguns empresários se dizem “espertos” por sonegarem tributos, alguns traficantes se dizem “espertos” por corromperem a polícia, outros indivíduos se dizem “espertos” por roubarem pequenas ou grandes somas de dinheiro, e assim se configura uma particularíssima “república dos espertos”. Anônimos ou famosos, aplaudidos ou execrados, os “espertos” aderem de modo nocivo ao que sociólogos como Roberto da Matta designaram de o “jeitinho brasileiro” ou, em termos mais patológicos, a “paranóia de se querer levar vantagem em tudo”.




   Embora não se saiba ao certo o que ocasiona essa  paranóia coletiva (da esperteza), o fato é que ela tem se mostrado tão perniciosa a ponto de poder ser descrita como um verdadeiro câncer social, destruindo células e órgãos de toda uma democracia. Talvez nem Freud ou Jung conseguissem explicar com minúcias a referida “paranóia da esperteza”, mas compreendê-la e combatê-la tem se mostrado tarefa tão imprescindível quanto a contenção de outras doenças.

   Assim, necessita-se urgentemente de um antídoto cuja fórmula inocule honestidade nos milhões de “espertos” que ultrajam os interesses públicos, em nome de interesses privados, muitas vezes espúrios e criminosos. Se houvesse um tratamento psiquiátrico efetivo para a “paranóia da esperteza”, poder-se-ia afirmar com certa probabilidade que escândalos de corrupção, shows de propinas e seus congêneres seriam páginas viradas na história da política brasileira. 




     
      Companheira da “paranóia da esperteza”, a “mistificação da ética” é a outra grande vilã que macula a sociedade como um todo. Em meio a tantos ultrajes à República, a ética tem constituído verdadeiro mito no contexto político e social, como se fosse um mero devaneio filosófico, e não uma obrigação concreta ou constante. De fato, não é necessário ser um grande filósofo para se verificar o modo pela qual o conteúdo ético das práticas políticas vem sendo mistificado no Brasil e também em outros países. Quando um parlamentar recebe propina ou quando um comerciante não emite nota fiscal, ambos sabem que estão agindo em detrimento do interesse público, ainda que não tenham conhecimento sobre qualquer teoria religiosa ou filosófica sobre práticas morais. 


   Assim, o grande empecilho de se mistificar a ética, tornando-a demasiadamente abstrata e inalcançável, é permitir que ela constitua exceção em um mundo cada vez mais destrutivo e complexo. No momento em que se mistifica determinado conceito, portanto, cai-se na armadilha de torná-lo excessivamente vago, nebuloso e, por conseqüência, impraticável. Desse modo, para se desmistificar a ética, é necessário praticá-la efetivamente, entendê-la como fato concreto e assumi-la como atitude cotidiana. De que adianta o seu Joaquim da padaria criticar a prefeita que desvia verbas públicas se ele mesmo sonega imposto ou vende produtos com validade vencida ? Desde quando a falta de ética por parte de alguns pode justificar a conduta ilícita de outros ? 

     O pensador e filósofo alemão Imannuel Kant, ao tratar sobre o tema da moral, em sua “Fundamentação da metafísica dos costumes”, escreveu que cada pessoa deveria agir de tal forma que o preceito de sua ação pudesse se transformar em lei universal. Se uma pessoa, por exemplo, não pode converter os atos de matar ou de roubar em imperativos universais, então tais atos não são éticos nem socialmente recomendáveis. Ademais, Kant frisou a ideia segundo a qual os seres humanos devem ser considerados fins em si mesmos, e não meros objetos para se alcançar finalidades alheias. Tais concepções kantianas, bem como outras idéias filosóficas, podem ser úteis tanto para se combater a “paranóia da esperteza” quanto para se evitar a “mistificação da ética”. Se cada político ou cidadão brasileiro agisse buscando transformar seu ato em lei universal, provavelmente não existiriam tantas comissões parlamentares de inquérito no Congresso, nem tantos processos criminais abarrotando os fóruns, nem tantos desvios de verbas públicas, inclusive destinados aos serviços essenciais como educação e saúde.





              Se houvesse uma semana de arte pós-moderna no Brasil,  noventa anos após o célebre evento modernista de 1922, talvez pudéssemos focalizar melhor o aperfeiçoamento de uma “oitava arte” em todo o país (a arte de agir com altruísmo, com solidariedade ao próximo). Contudo,  essa "arte" não pode ser apenas exposta em museus ou teatros municipais. Essa arte deve ser efetivamente praticada por todos os brasileiros que queiram pintar um novo quadro nacional, sem a “paranóia da esperteza” e a “mistificação da ética”. Caso contrário, será bem melhor transferir o nosso “sítio do pica-pau amarelo” para outro planeta do sistema solar. De preferência, Júpiter. 

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Texto de Juliana S. Valis, com adaptações, publicado originalmente em: